A brisa errada de The Last of us

Comentando sobre a serie do momento o Doutor em Farmacologia pela Unicamp e Professor de Biologia e Ciência na Rede Publica há 13 anos Igor Rapp Ferreira da Silva.

Desde a revolução agrícola os fungos estão presentes na produção de alimentos para a humanidade. Com o uso de leveduras, fungos unicelulares, principalmente da espécie Saccharomyces cerevisiae, humanos foram capazes de fermentar grãos e cereais levando a um incremento nutricional desses alimentos, além de melhorar, muitas vezes, o gosto também. Entre o trigo e o pão, qual é o que tem mais calorias e melhor gosto? Além disso não podemos esquecer que a história da medicina do século XX passa pela descoberta da penicilina, antibiótico isolado, do fungo Penicillum notatum, pelo cientista escocês Alexander Fleming em 1928. A penicilina só começou a ser produzida em larga escala em 1938, fato que parece ter sido determinante para a vitória Aliada na 2ª Guerra mundial, já que naquela época mais da metade dos soldados morriam por infecções bacterianas decorrentes dos ferimentos “ganhos” em batalhas.

E a penicilina foi somente o primeiro de uma série de antibióticos isolados das mais variadas espécies fúngicas. Outro desses, por exemplo, esteve no centro de uma polêmica ultimamente: a azitromicina. Ou seja, não há dúvidas de que fungos podem ser aliados importantes para a humanidade, ainda mais pensando que muitos desses seres são, também responsáveis pela decomposição de corpos de outros seres, tornando a ciclagem dos elementos necessários a vida algo possível. Mas será que eles podem ser vilões?

Claro! Quando eles provocam doenças! E há uma infinidade de doenças causadas por esses seres tão diversos da gente que são colocados em um mundo próprio, ou melhor, num reino particular: o reino Fungi. E se um fungo pudesse causar uma pandemia, igual a vista nos últimos 2 anos? Bem, essa é a premissa do game aclamadíssimo “The Last of Us”. Agora também série em Live action pela HBO max. A história acompanha os personagens Ellie e Joel em um mundo destruído após uma pandemia de uma doença fúngica.

Essa doença torna os hospedeiros, humanos que carregam o fungo, em verdadeiros zumbis agressivos e sedentos por sangue. Isso tudo por controlar o cérebro dos infectados, como é explicado na série. Mas o foco da história parece ser a relação entre os personagens, sobretudo a relação construída entre Ellie e Joel. “Parece” por que falhei como nerd e ainda não joguei o game, embora tenha gostado muito do primeiro episódio da série. De qualquer forma, estou aqui para dizer, como biólogo, que a série começou errando na sua base biológica. E essa é uma ótima oportunidade para aprender

Prometo não estragar a experiência de ninguém com esse texto! O episódio começa com um talk show com a entrevista de um epidemiologista (especialistas em distribuições populacionais de doenças) representado pelo ator John Hannah. Ele afirma que seus maiores temores são em relação a fungos já que eles produzem substâncias como a pscilocibina, ácido lisérgico e a penicilina. Essas substâncias combinadas poderiam produzir zumbis, já que as duas primeiras modificam comportamentos e a penicilina poderia impedir a decomposição do infectado.

De fato, essas substâncias, isoladas, possuem as atividades propostas pelo personagem. Pscilocibina e ácido lisérgico são substâncias psicoativas, ou seja, alteram o funcionamento do nosso cérebro, podendo alterar a nossa percepção e a nossa personalidade. E a penicilina tem a propriedade de antibiótico e por isso poderia combater bactérias decompositoras do corpo do hospedeiro. Mas há um problema na fala do epidemiologista: ela dá a entender que essas substâncias tem essas funções e o fungo teria a intenção de infectar. Espero esclarecer isso nesse texto, tentando responder o que essas substâncias são de fato.

Tanto a pscilocibina quanto o ácido lisérgico são agrupados em uma classe gigantesca de moléculas chamada alcalóides. Essas substâncias são caracterizadas por conterem estruturas cíclicas formadas por átomos de carbono (C) e nitrogênio (N). Os alcalóides podem ser produzidos por bactérias, fungos, animais e plantas. E a matéria-prima para essa produção são purinas (blocos que formam o DNA desses seres) e aminoácidos (unidades das proteínas). E parecem estar envolvidas em diversos aspectos da vida dos seres vivos.

Na pele do sapo cururu (Rhinella marina), há a produção da bufotenina, um alcalóide que afugenta as aves predadoras, talvez pelo seu gosto ou por provocar qualquer outra sensação desagradável. Ainda na linha de defesa, as folhas do tabaco (Nicotiniana atennuata) produzem nicotina quando atacadas por insetos herbívoros. Ou seja, esses alcalóides estão envolvidos na defesa dos organismos. Em vegetais há outro deles bem  importante: a auxina. Ela é o principal hormônio de crescimento desses organismos sendo produzido, principalmente, em brotos de galhos e ápice do caule das árvores.

Verdade! Existem muitos alcalóides que são psicoativos poderosos. Cafeína, cocaína, morfina, mescalina, pscilocibina e ácido lisérgico são alguns alcalóides bem conhecidos, todos eles possuindo alguma ação em nosso cérebro. Mas tenha certeza que nenhum deles é produzido por plantas e fungos para controlar a mente de ninguém. É muito mais provável que eles estejam envolvidos na defesa ou ainda no crescimento desses organismos.  Decidir como vamos utilizar essas substâncias, é responsabilidade só nossa!

E a penicilina Igor? Para quê fungos utilizam esse tipo de substância? Bem eles produzem antibióticos para controlar o crescimento de bactérias no seu em torno. O ambiente é hostil e cheio de competição, pelo processo de evolução tais seres desenvolveram essas substâncias para garantir sua sobrevivência. Fungos e bactérias são as principais “fontes de inspiração” para a produção de medicamentos contra infecções bacterianas. Vale ressaltar que fungos não tem a intenção de ajudar ninguém produzindo antibióticos. Ainda há mais um erro que gostaria de comentar e ele ocorre muito mais a frente no episódio.

Em uma das cenas Joel (Pedro Pascal) e Tess (Anna Torv) entram em um prédio e se deparam com um infectado. Em um primeiro instante, parece que um fungo arrasou o rapaz! Mas com um pouco de paciência podemos ver que há formas variadas por todo o corpo do cadáver. Poderiam todas essas formas ser fases diferentes do fungo? Poderiam sim, contudo há uma explicação mais provável. Infelizmente essa explicação põe a representação do cadáver na categoria de erro, embora ela demonstre melhor o que ocorre na natureza.

Nessa pessoa, dá para notar ao menos 4 espécies diferentes e uma delas nem é um fungo. Duas das espécies estão no grupo dos Basidiomicetos, fungos que produzem cogumelos. O Cordyceps sp., único parasita dessa lista, está classificado, atualmente, como ascomiceto – mesma família do fungo que produz o ácido lisérgico. E o intruso do grupo: um mixomiceto. Esse último está mais associado às algas unicelulares do que aos fungos de fato. Ou seja, o que vemos nesse infectado é uma associação de organismos, incluindo fungos. E esses, embora possam produzir antibióticos, podem ser bons de sociedade.

glicose com os fungos, e assim todos saem ganhando. Além disso, muitas plantas precisam que suas raízes estejam associadas a algumas espécies de fungos para que haja um suprimento de nutrientes, favorecendo o seu crescimento. A essas associações damos o nome de micorrizas e tais associações mostram o quanto os fungos podem ser ótimos aliados na natureza. Mas acredito que não tenha sido intenção do autor da série demonstrar isso certo?

  É óbvio que nada disso atrapalha a experiência de assistir a obra. Ao meu ver promete ser um grande sucesso da cultura pop. Além disso, essas e outras obras de ficção podem ser fontes interessantes de aprendizado. Às vezes por levantar questionamentos, outras por trazer informações acuradas e prontos para serem adicionadas à nossa base de conhecimentos. E outras vezes, por erros que, quando apontados, podem ser corrigidos e enriquecendo ainda mais o que conhecemos.

Igor Rapp Ferreira da Silva

Saiba Mais:

Lee, G., Joo, Y., Baldwin, I. T. & Kim, S.-G., 2021. Tissue-specific systemic responses of the wild tobacco Nicotiana attenuata against stem-boring herbivore attack. Journal of Ecology and Environment.

Dinis-Oliveira, R. J., s.d. METABOLISM OF PSILOCYBIN AND PSILOCIN: CLINICAL AND FORENSIC TOXICOLOGICAL RELEVANCE. Drug Metabolism Reviews.

Raven, P. H., Evert, R. E. & Eichhorn, S. E., 2001. Biologia Vegetal. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.

Roberts, M. F. & Wink, M., 1998. Alkaloids: Biochemistry, Ecology and Medicinal Aplications.. 1ª ed. Nova Yorque: Plenum Press.