A mulher que queria vencer a morte

Mais uma vez colaborando com o Portal Guaçuano o Professor Rapp de Biologia escreve um brilhante Artigo com o Tema: A mulher que queria vencer a morte.

A mulher que queria vencer a morte.

Independente do seu emprego, você deve acordar de manhã alertado pelo seu celular. Antes de sair, muitas pessoas preferem tomar banho em seu boxe com um chuveiro elétrico e água saindo quente por ele. Se você mora distante de seu local de trabalho ou estudo, vai dirigindo ou então “pega a condução”. Independentemente de ser carro, moto, ônibus ou até avião, eles te possibilitam chegar mais rapidamente ao destino que você quiser. Se você for a pé, precisará de calçados duráveis, flexíveis e confortáveis. Ao ler as notícias do dia, você, por mais incompreensível que isso seja, utiliza o mesmo aparelho que te acordou horas atrás e que te manterá assim por horas entediantes de trabalho a fio, seja por conta das redes sociais ou pelas músicas de algum serviço de streaming. Todas essas coisas, celular, chuveiro, veículos, calçados e a internet são produtos de uma só atividade humana: a Ciência. Por mais aparente que seja a sensação de que essas coisas “brotem” de uma hora para outra, essa não é a verdade. Toda a coisa criada através da ciência levou um tempão até chegar em nossas mãos. Por vezes, centenas de anos e de cientistas são necessários para formar o conhecimento suficiente para um avanço tecnológico. E não conhecer todo esse processo, pode nos levar a dar menos valor ao produto final. Quer um exemplo? O seu celular só foi possível devido aos primeiros estudos sobre a luz propostos por Isaac Newton no século 17. Ou seja, o seu celular é resultado de 300 anos, pelo menos, de conhecimento científico. Sabe outra história que deveria ser conhecida? A da vacina. Essa história começa na China, pois é sempre lá. Mas dessa vez estamos por volta do século XV e a doença era causada por outro vírus e suas variantes: variola major e variola minor. A varíola foi uma doença respiratória que causava bolhas de pus (chamadas pústulas) e que progrediam para feridas e cicatrizes que por vezes desfiguravam o paciente. Isso se ele tivesse sorte de sobreviver, 30% dos doentes acabavam morrendo. Por conta da sua longuíssima história (já que há múmias egípcias com marcas de varíola) e sua mortalidade, essa doença muitas vezes é equiparada a peste que assolou a Europa no séc.14. Ao longo dessa história de epidemias contínuas de varíola, chineses chegaram a uma técnica que diminuía muito a chance de morte. Esse método consistia em injetar pus, ou as cascas das feridas na pessoa a ser tratada. Isso podia ser feito ou arranhando a pele da pessoa ou então soprando esses materiais para dentro do nariz do “paciente”. Por vezes as pessoas apresentavam febre e outros sintomas, mas não a varíola, por vezes contraiam a doença e morriam. Esse método comumente era chamado de enxerto ou então variolação. Se havia sucesso nessa técnica de fato, não sabemos ao certo, porém até o século 18, a variolação tinha se espalhado pela Ásia, África e Oriente Médio. Mas essa técnica tinha os seus riscos, um deles era a disseminação da doença. Só para se ter uma ideia, último surto de varíola registrado na China, no século 20, possivelmente ocorreu devido a variolação de algumas pessoas. Voltando ao século 18, na Europa, não havia nada que controlasse a devastação. Há alguns relatos que falam em 400 mil mortos pela varíola por ano no continente. Sessenta por cento de todas pessoas cegas teriam perdido esse sentido devido a sequelas dessa doença. E aqui entra uma das personagens centrais da nossa história: Lady Mary Wortley Montagu. Por vezes negligenciada pela História, ela é uma das responsáveis pela introdução da variolação na Inglaterra. Mary nasceu em 1689 na Inglaterra e em berço de ouro. Família rica, biblioteca gigante em casa, menina interessada em aprender coisas proibidas a mulheres da época. Fórmula que criou uma mulher emancipada, se negou a casar-se por negócio e fugiu para ficar com o seu amor em 1713. Mas antes, perdeu o irmão mais novo e sua beleza para a varíola. Isso de alguma forma a transformou e a sensibilizou para o problema incontrolável da doença. E em 1715 seu marido (aquele da fuga) foi convidado para ser embaixador inglês na Turquia. Mary foi junto no papel de embaixatriz, muito observadora e atenta, curtiu os costumes turcos. Acho que a essa altura você já deve ter sacado o que aconteceu. Nessa época nossa Mary já era escritora, autodidata em latim e filosofia romana. Fascinada por uma certa técnica escreveu a sua amiga Sarah Chiswell em 1717. Em tradução livre: A propósito de enfermidades, vou lhe dizer uma coisa que tenho certeza que fará com que você deseje-se aqui. A varíola, tão fatal e tão geral entre nós, está aqui totalmente inofensiva, pela invenção do enxerto,… uma velha vem com uma casca de noz cheia de matéria do melhor tipo de varíola, e pergunta que veia você gostaria de abrir. Ela imediatamente rasga o que você oferece a ela, com uma grande agulha (que dá a você não mais dor do que um arranhão comum) e põe na veia tanta matéria quanto pode repousar sobre a ponta da agulha, e depois disso, liga o pequeno ferimento com um pedaço oco de concha, e dessa maneira abre quatro ou cinco veias… Você pode acreditar que estou muito satisfeita com a segurança do experimento, já que pretendo experimentá-lo em meu querido filhinho. A fascinação de Mary pela variolação foi tanta que se convenceu da importância dessa técnica como solução definitiva para a epidemia que assolava a Europa. E por isso, ela, Mary, teria o papel de difundir a variolação pelo seu continente natal. Em outra carta teria escrito: “Sou patriota o suficiente para me esforçar para trazer essa útil invenção à moda na Inglaterra.”. Ela mesma teria convencido o médico da sua comitiva Charles Maitland a acompanhar a variolação de seu filho. Já de volta a Inglaterra, em 1721, ela variolou a própria filha de 4 anos na presença de médicos e aristocratas ingleses. As duas vezes se mostraram sucessos. Nesse mesmo ano, Charles Maitland, faria um experimento testando a eficácia da técnica: aplicou a variolação seis prisioneiros de Newgate e os expôs a varíola. Deu certo: nenhum deles contraiu a doença. Após esses episódios, a técnica se espalhou pela Inglaterra e chegou às colônias inglesas na América. E em 1796, um médico inglês chamado Edward Jenner inspirado por todo esse histórico daria um passo decisivo para o desenvolvimento das vacinas. Ele observou que mulheres ordenhadeiras que contraiam a varíola bovina não eram mais molestadas pelo vírus humano. Com um benefício: a doença bovina nunca matava a vítima, quando muito causava feridas restritas a mãos e braços. Jenner, utilizando o pus das feridas de uma dessas mulheres (Sarah Nelmes) inoculou o braço de um garoto de 9 anos, James Phipps. E após isso, em repetidas vezes expôs o pequeno garoto a doença humana. Como James nunca desenvolvera a doença, provou que o novo método (chamado vaccina) era eficaz em prevenir a varíola. Isso ocorreu a quase 300 anos e a base do funcionamento das vacinas modernas é a mesma descoberta por esses pioneiros. A ciência não é mágica e nunca propõe soluções milagrosas. A cada produto tecnológico obtido, há, por trás, muito esforço de pessoas, por vezes esquecidas pelo tempo, mas que ainda hoje podemos sentir o poder de suas obras. Tenho certeza que você nunca ouviu falar de alguém que teria ficado doente de varíola, certo? Isso por que a doença desapareceu, em 1977, graças a essa combinação de obstinação e feitos dessas várias pessoas. Pense nos milhões de vidas que foram salvas nesses 300 anos e você terá a exata medida do valor dessa história. Quando você nega os benefícios da vacina, nega, em parte, o peso dessa história e da mulher que desafiou a morte.

Para saber mais: Joseph Needham. China and the origins of immunology. Centre of Asian studies, University of Honk Kong, 1980. Kotar, S.L.; Gesser, J.E. Smallpox: A history.

McFarland & Company, Inc., London, 2013. Riedel, S. Edward Jenner and the history of smallpox. and vaccination.

BUMC PROCEEDINGS 2005;18:21–25. Halsband, R. New Light on Lady Mary Wortley Montagu’s Contribution to Inoculation.

Journal of the History of Medicine and Allied Sciences, Vol. 8, No. 4 (October1953), pp. 390-405

Site: https://www.cdc.gov/smallpox/history/history.html a